terça-feira, 7 de agosto de 2012

Distúrbios respiratórios durante o sono na criança


Dra. Simone Fagondes (*) 

Introdução
Os distúrbios da respiração durante o sono compreendem uma série de situações clínicas, que vão desde a apnéia da prematuridade, apnéia da infância, síndrome da morte súbita do lactente, síndromes de hipoventilação (congênitas ou adquiridas) até os distúrbios obstrutivos durante o sono. Face à importância do tema, tanto pela prevalência elevada como pelas crescentes evidências de suas repercussões, principalmente cardiovasculares e neurocognitivas, serão a seguir abordados os distúrbios obstrutivos durante o sono, conjunto também denominado Síndrome da apnéia/hipopnéia obstrutiva da criança (SAHOS).

Definição
SAHOS da criança é um distúrbio da respiração durante o sono que é caracterizado por prolongados períodos de obstrução parcial das vias aéreas superiores e/ ou por episódios intermitentes de obstrução completa das vias aéreas, que interferem na ventilação e nos padrões normais de sono.

Epidemiologia
A SAHOS pode ocorrer em qualquer idade, com uma prevalência estimada de 2%. Tem um pico de prevalência entre 2 a 8 anos de vida, ocasião na qual as tonsilas faríngeas e palatinas são proporcionalmente maiores em relação ao tamanho da via aérea. Dados recentes sugerem que SAOHS tende a ser mais comum em crianças com história familiar de SAOHS, crianças da raça negra e ainda crianças com doenças ou condições clinicas que ocasionem obstrução tanto das vias aéreas superiores como inferiores, em pacientes com malformações craniofaciais, por exemplo.

A tabela 1 apresenta as principais condições associadas a SAHOS em crianças.

Tabela 1- Condições clinicas associadas a SAOHS
1- Síndromes Craniofaciais
   1.1-  Hipoplasia do terço médio da face
           Sindrome de Apert
           Sindrome de Crouzon
           Sindrome de Pfeiffer
           Sindrome de Treacher- Collins
   1.2-  Macroglossia/ glossoptose
           Sindrome de Down
           Sequencia de Pierre Robin
           Sindrome de Beckwith- Wiedman
   1.3- Outras
           Acondroplasia
           Sindrome de Goldenhar
           Sindrome de Marfan

2- Doenças neurológicas
        Paralisia cerebral
        Miastenia gravis
        Sindrome de Möbius
        Malformação de Arnold- Chiari

3- Miscelânea
        Hipertrofia de amigdalas e de adenóide
        Obesidade
        Hipotireioidismo
        Mucopolissacaridose
        Sindrome de Prader- Willi
        Anemia falciforme
        Estenose de coanas
        Laringomalácia
        Estenose subglotica
        Queimaduras de face e pescoço

4- Pós- operatório tardio
        Fenda palatina


Seqüelas
Quando não tratada, a SAHOS pode resultar em sérias morbidades. As conseqüências mais dramáticas, felizmente menos frequentes devido ao reconhecimento mais precoce da síndrome, são o cor pulmonale e o retardo mental. Ganho poderal insuficiente tem sido descrito e, principalmente uma recuperação do crescimento após adenotonsilectomia, o que se deve a redução do trabalho respiratório. Hipertensão pulmonar, disfunção ventricular direita e hipertensão arterial sistêmica também podem ocorrer.
Grande ênfase tem sido dada às repercussões neurocognitivas como dificuldades no aprendizado, problemas comportamentais e ainda déficit de atenção/hiperatividade.

Abordagem diagnóstica
SAHOS na criança caracteriza-se por um continuum que vai desde o ronco primário, entendido como uma situação benigna de ronco sem alterações fisiológicas e complicações; a resistência aumentada das vias aéreas superiores que é um subtipo ou uma variação da SAHOS caracterizada por perodos de aumento da resistência das vias aéreas e de aumento do esforço respiratório durante o sono associado com ronco, fragmentação do sono, sonolência diurna excessiva e redução do desempenho neurocognitivo; hipoventilação obstrutiva onde os achados prévios se associam com hipercapnia até, finalmente, a SAHOS, previamente definida. (Figura 1)
 
Figura 1- Continuum da obstrução das vias aéreas superiores durante o sono na criança

 
Avaliação clínica
A identificação de ronco, apnéias observadas pelos familiares e sono agitado são os principais indicadores da possibilidade de SAHOS. Recomenda-se a inclusão de questões para detalhamento do ronco (freqüência, intensidade, relação com infecções, posição corporal, continuidade, associação com esforço respiratório);  comportamento durante o sono e ao acordar, posição para dormir, ocorrência de enurese; presença de infecções de vias aéreas de repetição, respiração oral, desempenho escolar, labilidade emocional e co-morbidades (síndromes craniofaciais por exemplo).

O exame físico deve identificar a situação pondero-estatural do paciente (lembrando que as crianças com SAHOS tendem a ter um crescimento abaixo do previsto para a idade); avaliar evidências de obstrução crônica das vias aéreas superiores (estigmas do respirador bucal), hipertrofia de tonsilas palatinas (tanto nos diâmetros latero-lateral como antero-posterior); formato craneofaceal (face longa e ovalada, mento estreito e curto, retroposição da mandibula, palato alto e arqueado, palato mole alongada); avaliação cardiológica buscando sinais sugestivos de sobrecarga direita e ainda hipertensão arterial.

Exames complementares
Para a identificação de condições predisponentes recomenda-se a realização de Rx de cavum, em algumas situações, nasofibrolaringoscopia ou fluoroscopia das vias aéras superiores, ressonância magnética cerebral ou tomografia computadorizada na supeita de malformações ou massas no sistema nervoso central.

A polissonografia realizada em laboratório do sono é o exame padrão tanto para o estabelecimento do diagnóstico como para o controle do tratamento, quando indicado. O exame constitui-se em uma monitorização não invasiva de diversos parâmetros durante o sono e deve ser realizada durante sono espontâneo e noturno. Alternativamente e apenas para screening, em lactentes com até 6 meses de vida, pode-se realizar um estudo diurno reduzido (com um tempo recomdendado de 3 a 4 horas de registo).  Os estudos domiciliares com equipamentos portáteis, o registro do ronco com vídeo do paciente durante  o sono, o holter de oximetria durante o sono  são considerados, até o presente momento, de valor limitado para o diagnóstico de SAHOS.

A realização de ecocardiografia com ênfase para as cavidades direitas e identificação de sinais sugestivos de elevação da pressão em artéria pulmonar é sempre recomendada.

Tratamento
Diferentemente do adulto, o tratamento da SAHOS na criança, uma vez identificada a presença de hipertrofia de adenóide e/ou amigdalas, é cirurgico.
Outras alternativas de tratamento estão apresentadas na tabela 2.

Tabela 2  Opções de tratamento para a SAHOS na criança

Manejo clínico
Tratamento de rinite
Pressão continua positiva na via aérea não invasiva- Cpap ou bilevel
Perda de peso para os pacientes obesos

Tratamento cirúrgico
Adenoamigdalectomia
Cirurgias ortognáticas (nas crianças com malformações craneofaciais)
Traqueostomia em casos individualizados

 
(*) Médica do laboratório do sono do Hospital de Clínicas de Porto Alegre
    Doutora em Pneumologia pela UFRGS
    Professora do Programa de Pós-graduação em Ciências Pneumológicas da UFRGS

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

O Sono na Criança


Dra Simone Fagondes*

O sono é uma necessidade básica na vida, tão importante para o nosso bem estar como o ar, a água e o alimento. Quando dormimos bem, acordamos dispostos, alertas e prontos para os desafios do cotidiano. Mas, quando isto não ocorre, podemos ter sérias conseqüências. A privação de sono pode ocorrer tanto devido à quantidade de sono insuficiente como devido a problemas durante o sono.
Ter um sono contínuo e de boa qualidade é essencial para que tenhamos uma boa qualidade de vida. É importante ressaltar que esta necessidade vale também para as crianças.

Quantidade de sono

A quantidade de sono necessária varia ao longo da vida. Recém- nascidos e lactentes necessitam muitas horas de sono e tem vários períodos de sono ao longo das 24 horas. As sestas são essenciais nesta etapa da vida e esta necessidade pode se manter até os 5 anos. Ao entrar na adolescência, verifica-se que o sono tende a ser deslocado para um horário mais avançado da noite, mas persiste uma necessidade de sono em torno de 9 horas. Ao atingir a fase adulta, mesmo ao atingir a maturidade, a necessidade de sono permanece em torno de 7 a 9 horas por noite. É importante salientar que, com o envelhecimento, os padrões de sono podem modificar mas a necessidade de sono permanece a mesma.

Número de horas de sono necessárias ao longo da vida

Recem-nascidos e
Lactentes**
0-2 meses: 10.5 a 18.5 horas
2-12 meses: 14 a 15 horas
Pré-escolares e
Escolares**
12-18 meses: 13 a 15 horas
18 meses- 3 anos: 12 a 14 horas
3- 5 anos: 11 a 13 horas
5 a 12 anos: 9 a 11 horas
Adolescentes
8.5 a 9.5 horas
Adultos e idosos***
Média de 7 a 9 horas
 
** Inclusive sestas
*** Algumas pessoas necessitam somente 4 horas de sono, outras até 10 horas de sono


Problemas de sono em crianças

Os problemas de sono mais comuns em crianças são: transtornos comportamentais do sono, parassonias, síndrome da apneia obstrutiva do sono e movimento periódico de pernas. A seguir abordaremos os transtornos comportamentais do sono.

As questões relacionadas ao sono da criança vão se modificando à medida que ela cresce e vai transitando pelas várias fases do desenvolvimento. Resultam de uma série de variáveis que vão desde o próprio temperamento da criança, preferências circadianas individuais, expectativas e comportamento dos pais, ambiente e composição familiar até valores culturais.

No lactente, as questões mais freqüentemente apresentadas são os problemas para o iniciar o sono e manter-se dormindo. Os despertares ocorrem normalmente em todos os indivíduos na passagem de um ciclo de sono para outro. Normalmente esses despertares são rápidos, e a criança deveria ter a capacidade de volta a dormir sozinha. Algumas medidas profiláticas podem ser utilizadas para incentivar este comportamento. O ritual prévio à hora de dormir deve ser iniciado em torno dos 4 meses. Pode incluir banho, pijamas, canções de ninar, ambiente e luz apropriada, e, mais tarde, histórias e outros. É importante que este ritual ocorra logo antes do adormecer, mas que a criança seja deixada ainda acordada em seu berço para que adormeça só. Caso contrário, quando ocorrerem os despertares noturnos, a criança não será capaz de adormecer sem a presença de um adulto. Objetos de transição devem ser incentivados.  A mamadeira da madrugada deve ser retirada a partir dos 6 meses, e a mamadeira logo antes de dormir deve ser evitada pela questão associativa com o adormecer, além de favorecer cáries e otite média. Estima-se que em torno de 50% das crianças com 1 ano apresentem dificuldades na hora de dormir e 30% têm despertares noturnos problemáticos. A partir dos 12 meses, a aquisição crescente de habilidades cognitivas e da linguagem pode acentuar problemas de resistência a ir para a cama. Pode tornar-se um meio de testar os limites dos pais. A partir dos 2 a 3 anos, quando ocorre a transição do berço para a cama, a habilidade de ir sozinha para a cama dos pais pode piorar o problema dos despertares noturnos. O início de medos da noite pode coincidir com o desenvolvimento da imaginação e da fantasia. Por outro lado, a compreensão do significado simbólico dos objetos pode aumentar a confiança e o interesse nos objetos de transição. 

Na idade escolar, os problemas na hora de dormir e os relacionados a despertares noturnos permanecem freqüentes, ocorrendo em até 30% das crianças. 

Nesta idade podem surgir medos mais relacionados à realidade (medo de ladrões, por exemplo). Outro problema que pode acontecer é o tempo de sono insuficiente, decorrente da crescente independência da criança. Televisão e outros monitores eletrônicos têm sido associados com dificuldades para adormecer e manter o sono, assim como à maior prevalência de ansiedade e pesadelos noturnos. Durante este período da vida começa a se manifestar a preferência circadiana individual (matutinos x vespertinos). Esta tendência deve ser percebida e respeitada na medida do possível, ou seja, preservando o tempo total de sono. 

Na puberdade, ocorre um aumento na necessidade de sono e um atraso de aproximadamente 2 horas no horário de dormir, provavelmente pela associação de um componente biológico a questões socioculturais. Além disso, a variação no ciclo sono / vigília entre o fim de semana e os dias de semana, que já ocorria no escolar, acentua-se nesta fase. Embora a necessidade de sono do adolescente seja de, no mínimo, 9 horas por noite, estudos mostram que a maioria dos adolescentes dorme em torno de 7 horas por noite, resultando numa privação crônica de sono. Todos esses fatores combinados podem produzir sonolência significativa durante o dia e conseqüente prejuízo no humor, memória, atenção e aproveitamento escolar.

* Médica responsável pelo ambulatório e laboratório do sono do HCPA
Preceptora do Programa de Residência Médica em Pneumologia, com ênfase em transtornos do sono
Doutora em Pneumologia pela UFRGS
Professora do Programa de Pós-graduação em Ciências Pneumológicas da  UFRGS

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Enurese


*Prof. Dr. Nicolino César Rosito

Conceitos
        Micção involuntária durante o sono, com contração sinérgica e esvaziamento vesical total, em crianças maiores de 5 anos cujo controle vesical já deveria estar presente, com freqüência ≥ 1por mês, sem alterações físico-químicas na urina e sem defeitos do SNC.
Classificação
      Primária - nunca apresentou controle vesical
      Secundária - período de 6 meses de controle miccional
      Monossintomática - sem sintomas do trato urogenital ou gastrintestinal
      Polissintomática - outros sintomas miccionais, constipação, encoprese e problemas neurológicos
Incidência
        5 anos Þ 15% a 20%
        7 anos Þ  7%
        10 anos Þ  5%
        12 aos 14 anos Þ  2% - 3%
        Maiores de 15 anos Þ  1% - 2%
        Cura de 10% a 15% por ano
Causas
      Fatores genéticos, poliúria noturna, capacidade vesical pequena e resposta vesical de esvaziamento diminuída
Fatores Genéticos
      Associados aos cromossomos 8q, 12q, 13q, e 22q11
    Prevalência Familiar
      Pai e mãe Þ 77%
      Pai ou mãe Þ 43%
      Irmãos Þ 25% ; Gêmeos heterozigotos 36%, homozigotos 68%
      Ausência de antecedentes familiares Þ 15%
Anomalia no ritmo circadiano do ADH
Crianças Normais
       Níveis de ADH e osmolaridade aumentam durante a noite Æ ¯ volume urina (50%)
Crianças Enuréticas (~ 70%)
       Transtorno no ritmo circadiano do ADH - ¯ vasopressina Æ poliúria noturna  Atraso na Maturação
      Adolescentes - 90% Þ instabilidade vesical Þ capacidade vesical normal  e  diminuição funcional
Distúrbios do sono  e despertar
        Dormem profundamente
        Dificuldade no despertar
        Insensíveis a distensão e repleção vesical
        Alteração do padrão do sono Æ ¯ secreção ADH Æ  poliúria
      Apnéia do sono
Transtornos Emocionais
      Sentimento de inferioridade, vergonha e auto-estima baixa
Diagnóstico
Anamnese
      Freqüência das perdas urinárias
      Período de ocorrência (dia e noite)
      Intervalo de meses sem episódios de enurese?
      Outros sintomas
Exame Físico Geral
      Identificar anomalias do trato genito-urinário, estigma sacral, fecaloma
Avaliação Laboratorial: EQU e Cultura
Diagnóstico Diferencial
      Malformações urinárias ou disfunções miccionais
      Criança maltratada (abuso)

 
Tratamento
Medidas Gerais
        Retirar culpa e eliminar punições
        Reforço emocional
        Restrição hídrica
        Tratar constipação
        Evitar xantinas, cafeína, chás, sal, chocolates, refrigerantes,  frutas cítricas  e chimarrão  à noite
        Urinar antes de dormir
        Diário miccional
Medicamentos
Desmopressina: Bexiga Normal  +  Poliúria Noturna
      VO – 0,2 a 0,4 mg / dia, independente do peso, 30 a 60 min antes de dormir; por 3 meses ou esporádico   
      antidiurético potente, ¯ volume e concentra a urina
Imipramina:  crianças com hiperatividade, déficit de atenção, enxaqueca, ansiedade, depressão, dislexia e compulsão por alimentos
      1,7mg a 2,5mg/Kg/dia, anticolinérgico e antidiurético, atua no SNC
      Eletrocardiograma
     Oxibutinina: hiperatividade vesical
  • 0,3 mg a 0,5 mg/Kg/dia
 Alarmes: volume urinário normal e capacidade vesical
      Dispara na perda urinária
      14 noites secas consecutivas/ mês, por 2 ou 3 meses
Associações
      Desmopressina + Alarmes = Poliúria + Capacidade Vesical


* - Coordenador da Disciplina de Cirurgia Pediátrica e do Programa de Residência Médica de Cirurgia Pediátrica do HCSA – UFCSPA
 - Coordenador do Centro de Aperfeiçoamento em Urologia Pediátrica da CIPE – HCPA e Responsável pelo Setor de Urologia Pediátrica do HCPA - UFRGS


terça-feira, 31 de julho de 2012

Injúria renal aguda


Dra. Denise Marques Mota (nefrologista pediátrica)

Apesar do aumento da taxa de sobrevida de recém-nascidos criticamente doentes, as taxas de mortalidade e morbidades ainda permanecem altas. O componente neonatal é responsável por mais de 60% das mortes no primeiro ano de vida (mortalidade infantil). O primeiro ambiente do neonato é o intrauterino, que deve ser mantido até o termo, seguido pelo ambiente da UTI, que não é adequado ao desenvolvimento glomerular, especialmente nos prematuros que ainda não completaram a nefrogênese (ao redor de 36 semanas se completa).
A injúria renal aguda (IRA) é um distúrbio complexo, com manifestações variadas que vão de uma leve disfunção, muitas vezes não diagnosticada, até  anúria com necessidade de métodos dialíticos. A IRA é uma síndrome clínica onde ocorre diminuição súbita da taxa de filtração glomerular (TFG) por um período de horas a dias, acompanhada de acúmulo de produtos nitrogenados e distúrbios da homeostase. Os critérios diagnósticos ainda não estão definidos em neonatos, mas geralmente utilizamos duas alterações funcionais: creatinina sérica (marcador da TFG) e a oligúria. Ambos aparecem tardiamente, não sendo marcadores de injúria renal e sim de alterações já estabelecidas na função renal. A incidência nas unidades de tratamento intensivo neonatal é ao redor de 8-23%, com alta mortalidade (33-78%) que apresenta correlação com severidade da doença de base. Nos recém-nascidos <1500g o risco é maior (79% dos pacientes com IRA) assim como na asfixia neonatal (30-56%).
O rim neonatal apresenta algumas características que o tornam mais susceptível ao dano, tais como pressão arterial média baixa, fluxo sanguíneo renal baixo e resistência vascular renal alta. O sistema renina angiotensina e as prostaglandinas regulam o fluxo sanguíneo renal e as alterações hemodinâmicas que ocorrem ao nascimento e no período neonatal precoce podem levar a um prejuízo nesta auto regulação.
A etiologia da IRA pode ser dividida em pré-renal (nefropatia vasomotora: 85%), renal (parenquimatosa: 11%) e pós-renal (obstrutiva: 3%). Os fatores de risco mais comuns são hipovolemia, hipotensão arterial, hipertensão arterial, hipoperfusão renal, hipoxemia, drogas, infecções e acidose. Podemos antecipar o risco avaliando dados maternos (hipóxia intrauterina, hipoperfusão por alterações placentárias, hipotensão materna, sangramento materno e parto prolongado) e características dos recém-nascidos (prematuridade, anóxia neonatal, RN de mãe diabética, membrana hialina, septicemia, uso de ventilação mecânica e medicamentos nefrotóxicos (indometacina, aminoglicosídeos, ibuprofeno, furosemida, anfotericina) e doenças do grupo TORCHS).
Não há consenso em relação ao diagnóstico, mas utilizamos uma dosagem de creatinina acima de 1,5mg/dl ou aumentando pelo menos 0,2-0,3mg/dl por dia ou falha em diminuir na primeira semana de vida (RN a termo). A monitorização da creatinina é muito importante em todas as crianças em unidades de terapia intensiva. Deve-se suspeitar de IRA em neonatos com oligúria <0,5ml/kg/hora após o primeiro dia de vida, nos aumentos da creatinina >0,3mg/dia ou a não diminuição após 1 semana de vida. Os prematuros apresentam aumento da creatinina na primeira semana de vida e redução gradual, o que torna o diagnóstico mais tardio.
As alterações laboratoriais são decorrentes da falha do rim em manter a homeostase e se manifestam como aumentos na creatinina, uréia, ácido úrico, potássio, fósforo e cloro (que pode estar diminuído) e diminuição de sódio, cálcio e bicarbonato.
Medidas preventivas em todos os neonatos podem proteger o rim, tais como o rígido controle do balanço hídrico, a utilização prudente e racional de medicações com ajustes dos intervalos de acordo com a função renal, a avaliação da densidade urinária, o controle da pressão arterial, da gasometria e da creatinina. O controle de pressão arterial deve ser realizado na rotina da UTI e devemos usar as tabelas de valores de normalidade de acordo com a idade gestacional e pós-conceptual  para avaliação, diagnóstico e tratamento adequado.
A proteção farmacológica pode ser realizada com teofilina (antagonista da adenosina) que reverte a vasoconstrição causada pela hipoxemia e melhora função renal em RN com membrana hialina na dose de 1mg/kg EV nos primeiros 2 dias de vida e  com 8mg/kg  na primeira hora de vida nos anoxiados.
Após a instalação de IRA o tratamento é voltado para as alterações dos distúrbios hidroeletrolíticos, acidobásicos e da patologia de base. As indicações de diálise são por sobrecarga de volume, hipercalemia (não responsiva às medidas convencionais), acidose metabólica severa, hiperfosfatemia/hipocalcemia, necessidade de nutrição e drogas e falha do tratamento conservador. Uma ecografia renal e de vias urinárias deve ser realizada sempre para avaliação de malformações renais e de trato urinário que podem ser as causadoras do quadro de IRA.
O acompanhamento deve ser realizado após alta hospitalar durante o primeiro ano de vida pelo risco de deterioração renal, sendo que ao redor de 40% podem permanecer com disfunção residual.
A prevenção da prematuridade e o atendimento adequado na sala de parto diminui a mortalidade infantil e previne uma parcela significativa de IRA.

quarta-feira, 25 de julho de 2012

Asma na criança

Paulo Márcio Pitrez*

A asma é a doença crônica mais comum na criança, caracterizando-se por sintomas e exacerbações frequentes, consultas médicas em emergência, limitações aos exercícios, sintomas noturnos, perdas escolares, podendo comprometer o aspecto emocional da criança, e oferecendo importante dano à qualidade de vida. O manejo inadequado da doença gera gastos substanciais para a sociedade e órgãos públicos. No Brasil, estima-se que 15% das crianças em idade escolar são portadoras da doença (aproximadamente 7 milhões de crianças). Em todas as faixas etárias, morrem 6 pacientes por dia de asma no país. Estes números demonstram o tremendo impacto desta doença no país.

O pediatra deve, de forma personalizada, realizar o diagnóstico correto (excluindo outras doenças) e escolher o melhor tratamento profilático, frente ao espectro de gravidade, dominando totalmente a orientação quanto as técnicas de inaloterapia e o controle da adesão ao tratamento. Deve ser sempre priorizada a prevenção das “crises” e dos sintomas. A asma moderada-grave ocupa a porção dos casos que mais demanda atendimento médico e custos. Segundo as principais diretrizes internacionais para o manejo da asma, o corticóide inalatório (CI), o anti-leucotrieno e o beta-2 agonista de longa ação (LABA) são os fármacos mais eficazes para controle da asma moderada-grave. Com este arsenal terapêutico, é possível atingir o controle da doença na grande maioria dos casos (>90% dos pacientes). O testes terapêuticos são a base do manejo medicamentoso. O uso de CI em doses baixas a moderadas, do anti-leucotrieno (Montelucaste), ou a associação dos dois deve ser a linha de frente da prescrição da asma leve a moderada em crianças pelo pediatra. O LABA e outras terapias devem ser reservadas mais para o ambiente do especialista. Nas exacerbações, o beta-2 agonistas de curta ação deve ser sempre utilizado, restringindo o corticóide oral para os casos de maior gravidade. A melhor forma de administrar medicação inalatória é através de spray com espaçador ou inaladores de pó seco.

É interessante destacar que, mais do qualquer resultado de exame (ex: função pulmonar), a avaliação do controle da doença e da qualidade de vida da criança são as ferramentas mais importantes para o sucesso do tratamento. Esta avaliação é bastante focada em detalhada anamnese a cada consulta de avaliação, com ênfase no controle da doença, atividades diárias, lazer, aspectos emocionais, familiares e escolares. Medidas de controle ambiental (higiene básica do domicílio e prevenção do tabagismo ativo e passivo) são importantes. Também central no atendimento deste tipo de paciente, a educação sobre a doença é peça fundamental no manejo, orientando sobre a eficácia e segurança das terapias prescritas e derrubando mitos sobre asma, estes tão enraizados na população. Por fim, e não menos importante, é desafio do pediatra e de suas sociedades representativas também lutarem como classe para que o tratamento medicamentoso da asma seja oferecido universalmente às populações carentes no Brasil pelos gestores públicos em saúde e para que contínuas campanhas de educação façam com que a população torne-se cada vez mais familiarizada com esta doença tão prevalente e prejudicial às crianças.

* Professor da Faculdade de Medicina da PUCRS, Diretor do Instituto de Pesquisas Biomédicas da PUCRS e Pneumologista Pediátrico do Hospital São Lucas da PUCRS.

terça-feira, 24 de julho de 2012

Anti-inflamatórios não-esteróides e nefrotoxicidade

Viviane de Barros Bittencourt
Nefrologia Pediátrica – Hospital da Criança Santo Antônio

Os antiinflamatórios não-esteroides (AINES) são um grupo variado de fármacos com propriedades analgésicas, antitérmicas e antiinflamatórias. Sua ação farmacológica se dá através do bloqueio da enzima ciclooxigenase, levando a redução da síntese de prostaglandinas. Fazem parte deste grupo medicamentos muito conhecidos, em parte por alguns já estarem disponíveis no mercado há muito tempo, por serem de venda livre e pela ampla variedade de situações em que são utilizados.

A maioria dos pacientes toleram os AINES sem maiores problemas, no entanto, efeitos colataterais não são raros, sendo os gastrointestinais os mais frequentes, podendo levar a úlceras e sangramento digestivo. Outras potenciais complicações envolvem aumento de sangramento, broncoespasmo, alergia, hepatotoxicidade, nefrotoxicidade, precipitação de isquemia miocárdica.

Os AINES podem causar lesão renal de duas formas distintas: através de fatores hemodinâmicos e por nefrite intersticial aguda. A primeira forma está diretamente relacionada à redução na síntese de prostaglandinas. Embora as prostaglandinas renais sejam primariamente vasodilatadoras, elas não desempenham papel importante na regulação da hemodinâmica renal em indivíduos normais, uma vez que sua síntese basal é pequena. Em contraste, a liberação destas substâncias é aumentada na presença de doença glomerular, insuficiência renal, hipercalcemia e em estados de depleção de volume efetivo (insuficiência cardíaca, cirrose ou hipovolemia por perdas renais ou gastrointestinais). Nestas situações, as prostaglandinas agem para preservar o fluxo sanguíneo renal e a taxa de filtração glomerular, através do relaxamento da resistência pré-glomerular. A inibição da síntese de prostaglandinas nestes pacientes pode levar a isquemia renal reversível e insuficiência renal aguda, que pode ocorrer com qualquer AINE, mesmo com os seletivos mais modernos.

O risco de insuficiência renal está aumentado em situações em que há estimulação do sistema renina-angiotensina, tal como acontece na depleção de volume, bem como em pacientes com doença renal prévia, ou em uso de diuréticos e ciclosporina. Os AINES aumentam muito o risco renal quando usados em conjunto com ciclosporina ou tacrolimo, imunossupressores utilizados em doenças reumatológicas, renais e transplantes. Igualmente o uso concomitante com beta-bloqueadores e inibidores da enzima de conversão da angiotensina podem aumentar o risco de complicações renais

O uso de ibuprofeno ou indometacina em recém-nascidos prematuros, para fechamento de ducto arterial, pode também desencadear insuficiência renal. São pacientes de alto risco, pela instabilidade hemodinâmica, imaturidade renal, uso concomitante de outras drogas nefrotóxicas e estado hipovolêmico potencial, necessário para manejo do ducto. Há redução na filtração glomerular dos recém-nascidos prematuros durante o uso de ibuprofeno e esta situação pode manter-se até por um mês após o uso

A indicação médica de uso contínuo prolongado de AINES em pediatria felizmente não é frequente. Restringe-se principalmente a casos reumatólogicos. No entanto, nos últimos anos, temos acompanhado com preocupação o uso crescente, e muitas vezes indiscriminado, de ibuprofeno como antitérmico e analgésico. Observa-se que esta medicação passou a ser usada como primeira escolha de antitérmico por muitos profissionais, algumas vezes prescrita de forma fixa, sem intercalar com outro antitérmico. É pouco freqüente a preocupação em identificar pacientes de risco para nefrotoxicidade. Com a popularização tornou-se também freqüente o uso sem prescrição, abusivo, em caráter doméstico.

Já detectamos a prescrição e/ou uso pessoal inadequado de ibuprofeno em pacientes desidratados, com síndrome nefrótica descompensada, em episódios de pielonefrite, em crianças com insuficiência renal prévia e até mesmo em transplantados renais. Em vários destes casos foi possível detectar aumento da creatinina, provavelmente relacionado ao uso do antiinflamatório. Muitos outros devem passar despercebidos, uma vez que a medida de creatinina não é hábito em situações agudas. Tivemos a oportunidade de acompanhar 2 casos de crianças que desenvolveram insuficiência renal aguda oligoanúrica prolongada após uso de ibuprofeno em situação de desidratação e precisaram ser dialisadas.

Considerando o exposto, propomos uma análise mais cuidadosa dos riscos envolvidos no uso de antiinflamatórios não-esteróides, hoje largamente utilizados em amigdalites, processos ósteo-musculares, como antitérmicos e analgésicos em situações diversas. A identificação daquelas crianças mais suscetíveis de desenvolverem toxicidade renal pode evitar casos de insuficiência renal. Em especial, deve-se pesar muito o uso, ou preferentemente evitar o emprego, de AINES, inclusive como antitérmicos e analgésicos, em:

• Situações de hipovolemia detectável ou potencial: diarréia, vômitos, desidratação de causas diversas
• Insuficiência cardíaca
• Uso de beta-bloqueadores e inibidores da ECA
• Uso de ciclosporina e tacrolimo
• Transplantes
• Doença renal pré-existente, com ou sem insuficiência renal
• Uso de diuréticos, pelo risco de depleção de volume
• Recém-nascidos com creatinina aumentada, ou outros riscos renais associados
• Crianças com infecção urinária ainda não-investigada (podem ter alteração renal pré-existente)


No caso de ser absolutamente necessário o uso nas situações acima, recomenda-se a dosagem prévia de creatinina e a a monitorização da função renal durante o período de uso.