terça-feira, 24 de julho de 2012

Anti-inflamatórios não-esteróides e nefrotoxicidade

Viviane de Barros Bittencourt
Nefrologia Pediátrica – Hospital da Criança Santo Antônio

Os antiinflamatórios não-esteroides (AINES) são um grupo variado de fármacos com propriedades analgésicas, antitérmicas e antiinflamatórias. Sua ação farmacológica se dá através do bloqueio da enzima ciclooxigenase, levando a redução da síntese de prostaglandinas. Fazem parte deste grupo medicamentos muito conhecidos, em parte por alguns já estarem disponíveis no mercado há muito tempo, por serem de venda livre e pela ampla variedade de situações em que são utilizados.

A maioria dos pacientes toleram os AINES sem maiores problemas, no entanto, efeitos colataterais não são raros, sendo os gastrointestinais os mais frequentes, podendo levar a úlceras e sangramento digestivo. Outras potenciais complicações envolvem aumento de sangramento, broncoespasmo, alergia, hepatotoxicidade, nefrotoxicidade, precipitação de isquemia miocárdica.

Os AINES podem causar lesão renal de duas formas distintas: através de fatores hemodinâmicos e por nefrite intersticial aguda. A primeira forma está diretamente relacionada à redução na síntese de prostaglandinas. Embora as prostaglandinas renais sejam primariamente vasodilatadoras, elas não desempenham papel importante na regulação da hemodinâmica renal em indivíduos normais, uma vez que sua síntese basal é pequena. Em contraste, a liberação destas substâncias é aumentada na presença de doença glomerular, insuficiência renal, hipercalcemia e em estados de depleção de volume efetivo (insuficiência cardíaca, cirrose ou hipovolemia por perdas renais ou gastrointestinais). Nestas situações, as prostaglandinas agem para preservar o fluxo sanguíneo renal e a taxa de filtração glomerular, através do relaxamento da resistência pré-glomerular. A inibição da síntese de prostaglandinas nestes pacientes pode levar a isquemia renal reversível e insuficiência renal aguda, que pode ocorrer com qualquer AINE, mesmo com os seletivos mais modernos.

O risco de insuficiência renal está aumentado em situações em que há estimulação do sistema renina-angiotensina, tal como acontece na depleção de volume, bem como em pacientes com doença renal prévia, ou em uso de diuréticos e ciclosporina. Os AINES aumentam muito o risco renal quando usados em conjunto com ciclosporina ou tacrolimo, imunossupressores utilizados em doenças reumatológicas, renais e transplantes. Igualmente o uso concomitante com beta-bloqueadores e inibidores da enzima de conversão da angiotensina podem aumentar o risco de complicações renais

O uso de ibuprofeno ou indometacina em recém-nascidos prematuros, para fechamento de ducto arterial, pode também desencadear insuficiência renal. São pacientes de alto risco, pela instabilidade hemodinâmica, imaturidade renal, uso concomitante de outras drogas nefrotóxicas e estado hipovolêmico potencial, necessário para manejo do ducto. Há redução na filtração glomerular dos recém-nascidos prematuros durante o uso de ibuprofeno e esta situação pode manter-se até por um mês após o uso

A indicação médica de uso contínuo prolongado de AINES em pediatria felizmente não é frequente. Restringe-se principalmente a casos reumatólogicos. No entanto, nos últimos anos, temos acompanhado com preocupação o uso crescente, e muitas vezes indiscriminado, de ibuprofeno como antitérmico e analgésico. Observa-se que esta medicação passou a ser usada como primeira escolha de antitérmico por muitos profissionais, algumas vezes prescrita de forma fixa, sem intercalar com outro antitérmico. É pouco freqüente a preocupação em identificar pacientes de risco para nefrotoxicidade. Com a popularização tornou-se também freqüente o uso sem prescrição, abusivo, em caráter doméstico.

Já detectamos a prescrição e/ou uso pessoal inadequado de ibuprofeno em pacientes desidratados, com síndrome nefrótica descompensada, em episódios de pielonefrite, em crianças com insuficiência renal prévia e até mesmo em transplantados renais. Em vários destes casos foi possível detectar aumento da creatinina, provavelmente relacionado ao uso do antiinflamatório. Muitos outros devem passar despercebidos, uma vez que a medida de creatinina não é hábito em situações agudas. Tivemos a oportunidade de acompanhar 2 casos de crianças que desenvolveram insuficiência renal aguda oligoanúrica prolongada após uso de ibuprofeno em situação de desidratação e precisaram ser dialisadas.

Considerando o exposto, propomos uma análise mais cuidadosa dos riscos envolvidos no uso de antiinflamatórios não-esteróides, hoje largamente utilizados em amigdalites, processos ósteo-musculares, como antitérmicos e analgésicos em situações diversas. A identificação daquelas crianças mais suscetíveis de desenvolverem toxicidade renal pode evitar casos de insuficiência renal. Em especial, deve-se pesar muito o uso, ou preferentemente evitar o emprego, de AINES, inclusive como antitérmicos e analgésicos, em:

• Situações de hipovolemia detectável ou potencial: diarréia, vômitos, desidratação de causas diversas
• Insuficiência cardíaca
• Uso de beta-bloqueadores e inibidores da ECA
• Uso de ciclosporina e tacrolimo
• Transplantes
• Doença renal pré-existente, com ou sem insuficiência renal
• Uso de diuréticos, pelo risco de depleção de volume
• Recém-nascidos com creatinina aumentada, ou outros riscos renais associados
• Crianças com infecção urinária ainda não-investigada (podem ter alteração renal pré-existente)


No caso de ser absolutamente necessário o uso nas situações acima, recomenda-se a dosagem prévia de creatinina e a a monitorização da função renal durante o período de uso.

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